Nos finais do século XV, na longínqua terra da Índia, a costa do Malabar, hoje o litoral do estado de Querala, era já conhecida como uma importante região exportadora de especiarias, sendo ponto de encontro de mercadores da Arábia, Pérsia, África, e China. O território era uma manta de retalhos de pequenos reinos, de população maioritariamente hindu, mas com grandes comunidades de mercadores muçulmanos, que detinham uma posição de destaque nas transacções comerciais. As cidades portuárias de Calicute e Cananor eram os principais entrepostos comerciais. Estas terras já tinham sido visitadas diversas vezes por europeus, inclusive portugueses, que se aventuravam no oriente por terra e pelo Mar Vermelho. No entanto, a passagem destes aventureiros e exploradores deixou uma marca efémera naquelas terras. Mas, a partir de 20 de Maio de 1498, quando Vasco da Gama atracou em Calicute, Portugal mudaria esse mundo para sempre.
A liderança de Vasco da Gama tinha sido uma escolha improvável. Sem grandes dotes nem experiência de navegação, foram as suas qualidades pessoais e de liderança de homens, além da sua posição social e religiosa, e proximidade ao rei D. João II, que fizeram com que fosse ele a comandar a primeira armada portuguesa a chegar à Índia. No entanto, Vasco da Gama não desiludiria aqueles que nele confiaram. Partindo do Restelo, em Lisboa, em 8 de Julho de 1497, lutaria contra ventos e correntes desconhecidas dos portugueses, dominaria revoltas a bordo, resistiria às recepções hostis na costa oriental africana, e demonstraria também qualidades diplomáticas no trato com os soberanos indianos.
A resistência à chegada dos estranhos portugueses à Índia era grande, pois antecipava-se a vontade destes em dominar o comércio de especiarias. Logo desde a primeira armada de Vasco da Gama, os portugueses tiveram de lidar com a desconfiança da classe reinante, e a oposição dos mercadores muçulmanos, que detinham o monopólio das rotas comerciais terrestres na Índia. Os portugueses tinham de percorrer um caminho periclitante entre o conseguir apoios e concessões por parte dos soberanos, e ao mesmo tempo lidar com a intriga, chantagem, e actos de agressão por parte dos mesmos. Facilmente se dava uma escalada da violência, como no ataque à feitoria de Calicute, estabelecida por Pedro Álvares Cabral, tendo os portugueses respondido de uma forma brutal, de maneira a não deixar dúvidas quanto ao poder da nova potência marítima, usando a artilharia para contrariar a desvantagem numérica. Visitar a praia de Calicute foi para mim uma lição de história.
Entretanto regressado a Portugal, após uma viagem de regresso terrível contra ventos desfavoráveis, em que perde grande parte da tripulação, incluindo um irmão, Vasco da Gama receberia honras de Estado, passando a usar o título de Dom, sendo nomeado Almirante do Mar da Índia. Mas o apelo do mar e das terras longínquas era mais forte, tendo viajado pela segunda vez para o Oriente em 1502, submetendo, pelo caminho, Kilwa Kisiwani (em português, Quíloa), na actual costa da Tanzânia, na época, um dos mais importantes portos da costa oriental africana.
Na costa indiana, era tempo de construir defensivamente, e a edificação de fortes rapidamente acompanharia o nascimento das feitorias. Por exemplo, Cananor, atual Kannur, visitada pela armada portuguesa em 1501, sob o comando de Pedro Álvares Cabral, viu estabelecer-se aí uma feitoria no ano seguinte, supervisionada pelo próprio Vasco da Gama. Poucos anos mais tarde, o futuro vice-rei da Índia, Francisco de Almeida, ordenou a construção do forte de St. Ângelo em Cananor, que sofreria ataques e cercos, e viveria momentos de suspense e drama dignos de menção nos Lusíadas de Camões. Em 1663, Cananor acabaria por ser conquistada pelos holandeses, que reconstruiram a fortaleza portuguesa, sendo desta altura as ruínas das estruturas que chegaram até hoje e que visitei durante a minha viagem em Querala.
O domínio português em Calicute, actual Kozhikode, seria efémero. Pedro Álvares Cabral tentou erigir aí uma feitoria, para a qual tinha sido escolhido como escrivão Pêro Vaz de Caminha, autor da famosa carta a El-Rei D. Manuel, relatando o descobrimento do Brasil, e que acabaria por morrer em combate num ataque muçulmano à feitoria. Os portugueses acabariam por abandonar Calicute em 1525, deslocando para norte as rotas de comércio.
Novas frotas se seguiriam, com um número crescente de homens e embarcações. Homens como Afonso de Albuquerque e Tristão da Cunha, homens com determinação e pensamento estratégico, liderariam a expansão portuguesa nas costas dos Mares Arábico e Índico. O estado da Índia seria declarado oficialmente em 1505, com capital em Cochim, actual Kochi, que permaneceria como capital da Índia portuguesa até 1530, fazendo parte do Estado Português da Índia até 1663, sendo hoje a maior cidade do estado de Querala. Em Coulão, actual Kollam, os portugueses fundaram uma feitoria em 1505, tendo construído o Forte de São Tomé em 1518, que seria conquistado pelos holandeses em 1661. Actualmente, podem encontrar-se as ruínas de um dos três torreões dessa fortaleza na baía de Tangasseri, que infelizmente não tive oportunidade de visitar.
Ainda antes dos portugueses abandonarem Calicute, construiriam o Forte de Kottappuram, entre Forte Cochim e Calicute, em 1523, que terá desempenhado um papel importante nas guerras que se seguiram tendo ficado praticamente em ruínas depois da luta com os holandeses. Hoje é também possível visitar este forte através de um circuito de barco criado pela empresa Muziris, que visita uma das áreas mais importantes no comércio das especiarias para os portugueses, assim como os canais e o Palácio de Paliam (Paliyam Kovilakom).
Cranganor, actual Kodungallur, é hoje o local onde o Forte de Kottappuram se encontra e que se pensa ter sido o local onde o Apóstolo Tomé aportou. Daí a edificação de um forte português, mandado erigir por D. Francisco de Almeida, e que acabaria por cair nas mãos dos holandeses em 1662.
Goa, tomada em 1510, tornar-se-ia a capital desse novo império, sendo o centro do novo governo e o local de residência do vice-rei da Índia, constituindo-se como uma espécie de extensão de Lisboa no Oriente. Com a consolidação territorial, a Igreja, com os seus longos braços da Inquisição e dos Jesuítas, rapidamente se juntaria ao esforço de expansão, acrescentando-lhe a face da evangelização e combate das heresias. À chegada de Vasco da Gama, a sua tripulação tinha confundido as divindades femininas hindus com representações de Maria, e rezado diante delas, mas esses equívocos estavam no passado. A Igreja Católica não permitiria enganos nem concessões religiosas e, ironicamente, perseguiria até cristãos, descendentes daqueles que testemunharam a chegada do Apóstolo Tomé à Índia em 53 d.C., subjugando-os à vontade do Papa. Ainda hoje, apesar de unidas com a Santa Sé, as Igrejas Católicas Siro-Malabar e Siro-Malancar gozam de alguma autonomia, cada uma com sua respectiva conferência episcopal, e contam com milhões de fiéis na índia, em particular no estado de Querala.
Pela pressão do confronte de interesses económicos e da tensão religiosa, o império português foi sempre alvo da resistência armada local, sendo também foco da cobiça de outras potências ocidentais, mais poderosas e com maior potencial económico. Passados 150 anos da viagem de Vasco da Gama, as derrotas sucessivas dos portugueses face à Companhia Holandesa das Índias Orientais, fizeram com que os interesses nacionais se reorientassem para o Brasil e a costa ocidental de África. Apesar de algum território ter permanecido português, como Goa, Damão e Diu, colónias portuguesas até 1961, a verdade é que a presença portuguesa no Índico declinou drasticamente durante o século XVII.
Vasco da Gama regressaria ao Oriente em 1524, então nomeado sexto governador do Estado Português da Índia (o segundo com o título de Vice-rei, depois de D. Francisco de Almeida), à frente de uma armada de três mil homens, tendo por missão consolidar o poder e moralizar a gestão e administração portuguesa, permeável à corrupção. No entanto, não teria tempo de completar a sua missão, pois contraiu malária pouco tempo depois da chegada a Goa, tendo morrido na véspera de Natal desse ano, em Cochim. Foi sepultado na Igreja de São Francisco, tendo os seus restos mortais sido transladados para Portugal em 1539, para um convento carmelita, próximo da vila de Vidigueira, da qual era Conde, e finalmente, em 1880, transladados para o Mosteiro dos Jerónimos, no qual repousa ao lado de Luís de Camões, que melhor do que ninguém imortalizou o desafio aos deuses daqueles portugueses que se lançaram por mares nunca dantes navegados. Dessa forma, visitar a igreja de São Francisco, em Cochim, e o lugar onde o seu corpo repousou durante 14 anos era para mim uma prioridade.
Hoje, em Querala, Vasco da Gama continua a ser a figura portuguesa mais conhecida e reconhecida pela população. A aventura portuguesa, e o sonho de uma potência global que dominaria as rotas comerciais marítimas no Oriente chegaram ao fim, mas o legado português, o legado de Vasco da Gama, cultural, patrimonial, e humano, perdurou até aos dias de hoje e continuará a fazer parte de uma história conjunta que liga o ocidente ao oriente, mundos tão diferentes, mas que, desde Vasco da Gama, sempre viveram um em função do outro.