Ainda antes de existir memória escrita, já havia memória cantada e dançada. Desde tempos imemoriais, a humanidade usa a dança e a canção para contar histórias e ensinar lições, de uma forma lúdica e atraente. E que melhor lugar para descobrir as raízes dessa antiga forma de comunicação senão na Índia?
Os ensinamentos religiosos, que originalmente eram transmitidos de forma oral entre mestre e discípulo, foram gradualmente tomando uma forma mais permanente em textos escritos, e transmitidos à população na forma de teatro, dança e canto. Existem várias danças clássicas indianas, mas a que excede todas no carácter teatral, na minúcia da maquilhagem, e no impacto visual, é a Kathakali.
Com origem em formas teatrais mais antigas, o seu início é fonte de controvérsia, mas pensa-se que poderá ter parecido há cerca de 300 anos, na região de Querala, no sul da Índia. As fontes escritas deixaram de ser apenas os textos mais tradicionais, passando a englobar textos épicos como o Mahabharatha. Enquanto o nome de outras artes teatrais derivava da fonte usada, a nova designação juntou simplesmente Katha (“história”) e Kali (“arte ou performance”), nascendo a Kathakali.
As histórias contadas na kathakali, baseadas na mitologia popular, lendas religiosas ou contos épicos, rodam todas em torno da eterna trindade indiana: sattva, o bem ou acção construtiva, tamas, o mal ou acção destrutiva, e rajas, a paixão ou acção não direccionada, elementos presentes, em diferentes proporções, em todas as personagens.
A escolha das cores da maquilhagem é um dos factores mais importantes na identificação e tipificação das personagens, e ao mesmo tempo dos mais impactantes sobre os espectadores. O vermelho é a cor do mal, o verde a dos heróis, o amarelo, a dos monges e mulheres.
Tradicionalmente apenas interpretado por homens, a performance da kathakali em palco inclui a vocal (interpretada geralmente em malayalam, uma língua ainda hoje falada por milhões de pessoas na Índia), mas também gestos, expressões faciais, posições corporais, os passos, a música, tudo incorporando elementos de artes marciais e tradições atléticas do sul da Índia. A música é dominada pelos pratos e tambores. Antigamente, as peças eram ao ar livre, e duravam a noite toda, desde o anoitecer até de madrugada, acabando com o nascer do sol, mas hoje, são cada vez mais as salas de espectáculos o palco privilegiado.
O saber religioso e a cultura popular encontraram assim na Kathakali uma simbiose perfeita, permitindo a transmissão da informação de uma forma que as pessoas apreciam visualmente e que lhes fica no ouvido. Hoje, a Kathakali é também uma das expressões culturais mais populares entre os turistas que visitam o sul da Índia e uma das bandeiras na divulgação cultural do estado de Querala. O que atraiu os primeiros espectadores ao Kathakali há 300 anos, está agora a fascinar pessoas de todo o mundo.