Navegando em um barco de arroz por Kerala

19th March 2014

Passados 9 dos 17 dias da expedição de travelbloggers do #KeralaBlogExpress, promovida pelo #KeralaTourism, já passamos pelas lindas praias de pescadores de Poovar e pelos abismos do litoral de Varkala; fizemos birdwatching pelo santuário de pássaros de Kumarakon e tentativa de tigerwatching na Periyar Tiger Reserve; e conseguimos avistar elefantes (com filhotes!), bisões, um veado e um javali no safári de barco pela região de Thekkady. Mas o passeio mais diferente – e agradável – até agora foi o do 5o e 6o dias: um minicruzeiro em um antigo barco de transporte de arroz.

O hoje famoso passeio de houseboat pelas backwaters de Kerala surgiu nos anos 1990. Antes, estes barcos longos com proa em forma de cobra e belos telhados de palha trançada eram usados basicamente para o transporte do arroz produzido no interior de Kerala. Com o desenvolvimento do transporte rodoviário, o deslocamento dessa carga passou a ser amplamente feito por terra, quase exterminando um ganha-pão importante na região. Sem dinheiro até para ter uma casa, vários trabalhadores passaram a habitar as embarcações. Até que alguém teve a ideia de transformar seus barcos-casas em hospedarias turísticas.

Deu certo. Hoje, mais de 800 houseboats circulam pelos canais do Lago Vembanad com viajantes interessados em observar os vilarejos, plantações de arroz, escolas e igrejas ribeirinhas. Nosso passeio partiu de Kumarakon, mesma base  de nossa hospedagem mais fina até agora (pernoitei no Coconut Lagoon, mas outros integrante do grupo dormiram no The Zuri e no Kumarakon Lake Resort  – este último, famoso por ter hospedado o Príncipe Charles e a esposa Camilla Parker-Bowles recentemente). Como tanto os barcos da Lakes e Lagoons, que nos recebeu, quanto os do Rainbow Cruises, que abrigou o restante do grupo, têm entre dois e quatro quartos, acabamos pegando um de três quartos para a Gaía, o Oscar e eu.

Os quatro tripulantes nos receberam superbem, ainda que não entendessem quase nada do nosso inglês (e nem nós entendíamos o que eles tentavam dizer). Conseguimos decorar apenas o nome do de menor patente entre os quatro, o Mobil (bastava lembrar do nome do óleo….) e nos comunicamos ao melhor estilo indiano, com sorrisos, olhares e mexidinhas de cabeça (sendo que o “sim”, aqui na Índia, é dito mexendo a cabeça como em uma balança, aproximando a orelha e o ombro pra um lado e depois para o outro). Como neste país ninguém tem o hábito de falar “bom dia”, “por favor”, “desculpa” e “obrigado”, como no Ocidente, nossos sorrisos e movimentos de cabeça foram suficientes para esses dois dias.

O capitão “X” topou hastear na proa a bandeirinha do Brasil que sempre levo comigo e o português virou a língua oficial do barco (algo bem relaxante depois de dias mudando a chave interna do cérebro pra se comunicar em várias línguas com colegas de 14 países). Minha caixinha de som portátil passou a tocar, pelo computador, de Caetano a Comadre Fulozinha (a banda anterior da Karina Buhr) enquanto tomávamos as três garrafas de vinho indiano depois do entardecer.  Batizamos nosso houseboat de The Brazilian Pirates Boat, apelido amplamente difundido no grupo dos travelbloggers no WhatsApp – que virou a principal ferramenta de comunicação da galera, com 140 mensagens em uma única noite (fiquei sem checar por um tempo e foi esse o número de recados que perdi…).

A brisa do barco em movimento deixou a experiência ainda mais gostosa, em meio a uma paisagem que misturava as curiosas redes de pesca de estilo chinês, adotadas há séculos por aqui, com os carregadores de sacas de arroz, enchendo barcos e caminhões nas margens. Vimos espécies de van escolares aquáticas lotadas de crianças uniformizadas e que faziam festa ao nos ver. As igrejas católicas mais uma vez se mostravam com arquitetura ousada e decoração psicodélica (com luzinhas piscantes coloridas, por exemplo), inspiradas evidentemente no politeísmo original indiano.

Nossas instalações eram simples mas confortáveis, embora outros colegas tenham tido mais sorte e se hospedaram em barcos refinados, alguns com dois andares. A parte dianteira, logo atrás do manche do comandante, era a do nosso convívio social, com cadeiras fofinhas e uma espécie de sofá-lounge onde ficamos esparramados conversando, vendo a paisagem, atualizando nossas redes sociais (nossos celulares todos ganharam chips locais para facilitar a comunicação). Servidas ali mesmo em uma mesa ampla, as refeições – almoço, jantar e café da manhã – também foram saborosas, com peixe fresco, curry, arroz, frutas….

O ponto alto do dia foi o pôr-do-sol. Ancoramos, vários dos barcos da expedição, colados um ao outro, e começou um entra-e-sai pra visitar as casas flutuantes da vizinhança. Depois de beber, jantar e dar até uma aula fajuta de samba-no-pé pra Roxane, blogueira indiana vizinha, fomos dormir. Eu viria a sofrer com o ar-condicionado gelado (não achei o controle remoto e tive que escancarar a porta do quarto para minimizar o frio). Mas antes disso eu tinha curtido tanto ficar deitado na proa, olhando o mar de estrelas, que o frio do resto da noite virou um detalhe pouco importante no contexto.

Na verdade, só não dormi na proa porque o espaço da frente, que tinha sido o nosso lounge durante o dia, se transforma no dormitório ao ar livre da tripulação durante a noite. Não dava nem pra reclamar. Embora os barcos de arroz tivessem sido nossas inesquecíveis casas por um dia, eles são na verdade o lar-doce-lar da tripulação, formada por ex-produtores de arroz. Eles, sim, são os verdadeiros moradores das fascinantes backwaters de Kerala.

 

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