25th June 2014
O indiano falando inglês com sotaque forte soava aflito. “A senhora precisa sair agora. Um carro a está esperando na estrada”. Passava pouco das sete da manhã e eu estava no alto da uma figueira de bengala dentro do Parque Nacional de Wayanad, nas montanhas do Western Gats do sul da Índia.
A idéia da casa na árvore não tinha sido minha. Ao chegar no hotel em Wayanad na manhã anterior, depois de uma viagem de cinco horas por uma sinuosa estrada do Kerala, o próprio hotel ofereceu a hospedagem numa de suas três casas dentro da floresta. Achando que tinha dado sorte no sempre misterioso critério de escolha dos quartos do #KeralaBlogExpress, aceitei de pronto.
O jipe do hotel entrou na floresta, estacionou ao lado da enorme árvore ancestral com bons trinta metros de altura. Lá em cima, feita em madeira e acessível por uma magricela escadaria de metal, estava minha morada pelos próximos dias. Mas isso ficaria para depois. Só tive tempo de largar minha mala num canto e ouvir as indicações do gerente do hotel: há um interfone para falar com o guarda de segurança que fica na entrada da trilha; não deixar acesa nenhuma luz quando for dormir (a luminosidade atrai animais); não deixar porta ou janelas abertas em nenhum momento (bichos vão entrar); envolver a cama na tela quando for dormir (protege contra insetos e bichos que possam entrar no quarto). Anotei mentalmente e corri para re-encontrar o grupo e partir para uma atividade programada.
A tarde foi especialmente chata: cansados da viagem, encaramos uma apresentação da estratégia do Departamento de Turismo de Wayanad com direito à power point no telão, seguida de viagem de ônibus por dentro da reserva com um guia explicando a geografia e jantar ao ar livre com notáveis da comunidade numa espécie de clube de campo onde eu e meus dois amigos brasileiros nos escondemos atrás de uma moita quando alguém chamou no microfone “the Brazilians to do a little samba”. Na volta, ainda tivemos uma sacolejante hora de jipe na noite escura.
Mas minha criança interior continuava animada. Uma casa em cima de uma figueira, no meio da mata, só pra mim, por três noites! Depois de dez dias pulando de quarto de hotel para ônibus sem descanso pelo sul da Índia, a simples idéia de tirar as roupas da mala era promissora.
Passava das dez da noite quando chegamos de volta ao hotel. Com a barriga cheia de cerveja morna e comida de buffet, lembrando que o próximo programa estava marcado para as nove da manhã seguinte, escalei a íngreme escadinha de metal, entrei no quarto, atualizei o WhatsApp do grupo com mensagens na linha “minha treehouse é incrível, amanhã mando fotos”, tomei um banho, desfiz a mala, escrevi três coisas no MacBook e fui deitar.
Foi aí que notei os insetos. Porra, odeio inseto. Mas tudo bem, estou dentro da floresta, numa construção em madeira e palha no topo de uma árvore. Aí notei que a tela metálica entre o chão do quarto e o enorme tronco da figueira que atravessa a construção era mais buraco do que proteção. Não dá pra evitar que um bicho menor entre no quarto. Quem sabe até algum roedor. Uma aranha. Uma cobra. Melhor não pensar nisso, apagar a luz e aproveitar o cansaço para dormir cedo. Com certeza a floresta vista de cima logo cedo seria gratificante.
Mas o sono não veio. No lugar dele o que chegou foi uma orquestra de sons: galhos balançando, pássaros noturnos, a parede rangendo, um animado grupo de moleques jogando bola no telhado, a palha ao redor das janelas sendo remexida e fazendo um barulho parecido com saco plástico amassando… Na minha cabeça, um tigre de bengala caminhava pela varanda, uma caranguejeira me encarava no criado-mudo de bambu e uma serpente exótica subia devagar pela cama tentando achar passagem pelo tecido da tela até se enrolar no meu pé. Esvaziar a bexiga cheia de cerveja do jantar estava, claro, fora de cogitação. No único momento em que perdi a luta contra o conselho de não acender a luz, dei de cara com a barriga peluda de uma mariposa do tamanho de um pires pousada na acima da minha cabeça.
Foi uma longa noite em claro interrompida por curtos cochilos. De manhã, incentivada pela bruma fria na varanda, tomei coragem e fui saudar os primeiros raios de sol. Passei a hora seguinte vendo uma família de fuinhas pulando nos galhos da figueira mais próxima e contando os macacos que passaram a noite andando no telhado.
Todo o medo da noite escura foi embora. De dia, as montanhas de Wayanad não assustavam ninguém. Pelo contrário, eram cheias de luz e de vida. Deu até vontade de descer a escada para caminhar na mata. Foi aí que o tal telefone de emergência tocou.
“O carro está esperando, senhora”.
Pensei ah, esses hotéis indianos, sempre tão gentis e cuidadosos com seus hóspedes… expliquei que meu encontro com o grupo era só às nove da manhã, ainda tinha tempo, obrigada, eu iria andando depois.
“A senhora precisa desocupar a casa na árvore agora. Um carro está esperando. Precisa de ajuda com a bagagem?”
Insisti que não, que meu grupo ficaria no hotel mais dois dias inteiros e que…
“Nós sabemos, senhora, mas há uma reserva para a casa na árvore e o quarto deve ser preparado para o próximo hóspede. A senhora precisa sair daí agora. Um carro está esperando”.
Apegada à manhã idílica na varanda em cima da figueira, tentei discutir. Mas é uma grosseria, vocês não podem me mandar embora, nem tive tempo de ver a casa na árvore direito, tive uma noite horrível, como vou escrever algo bom sobre seu hotel se você trata uma convidada dessa forma e etcetera. Irredutível, o gerente apenas garantiu que eu teria um ótimo novo quarto à minha disposição e me lembrou que o carro estava esperando no começo da trilha. “Precisa de alguém para ajudar com a bagagem?” Gritei um irritado TÔ INDO e bati o telefone.
Bufando para expulsar a contrariedade, comecei a arrumar as coisas. Por último, o computador na mochila. Em cima da tampa fechada do MacBook, um presente me encarava. Marrom claro, do tamanho de um polegar, brilhante e com aparência seca. Um cocô de bicho. E mais: um cocô de bicho que não estava ali quando fui dormir.
Olhei rapidamente em volta: porta fechada, janelas fechadas. O que quer que seja que entrou no quarto, provavelmente não saiu. Um minuto depois, eu estava vestida e entrando de livre vontade no jipe do hotel. Eles que arrumassem minhas coisas.