Comprando remédios com o senhor Gurukkal

4th April 2014

Meu avô dizia que o caráter de um homem se reconhece na firmeza do aperto de mão. Ele iria aprovar o senhor Gurukkal, que aos 80 anos exibe vitalidade ayurvédica apertando com força minha mão no instante em que adentrei sua loja numa rua comercial de Kumily, região de Tekkadhi, nas montanhas produtoras de especiarias do sul da Índia.

Além de médico, massagista e dono da loja, Rajan Gurukkal é mestre de kalari, a arte marcial ancestral do Kerala. É no cuidado da saúde dos guerreiros kalari que estão as bases dessa medicina hindu ancestral, misturando técnicas de massagem vigorosa, dietas rígidas e óleos vegetais.

Estou procurando três tipos de óleos diferentes para passar em meu joelho esquerdo, sempre dolorido, indicado por um médico ayurveda em outra cidade, dois dias antes. Começo a explicar mas sou interrompida: Rajan está apertando meu braço. E apertando bem. “Massagem é de verdade, não é massagem para turista”.

Agradeço mas não quero massagem, quero apenas comprar óleos. Mostro os nomes anotados num pedaço de papel, mas Rajan os empurra de volta: não sabe (ou não quer) ler. Arrisco a pronúncia dos longos nomes que ele entende de imediato, buscando num armário de vidro três garrafas verdes com rótulos brancos e tampas de metal.

Após rabiscar rapidamente o preço em rúpias num pedaço de jornal, Rajan está volta ao meu braço. “Minha massagem energiza as veias, a massagem é boa para juntas, dores de cabeça, dores musculares. Muitos clientes estrangeiros, inclusive famosos!”. Para provar, ele aponta para as fotos nas paredes. Algumas estão lavadas pelo tempo, mas todas mostram seu Rajan ao lado de ocidentais sorridentes. Na maior, plastificada, o mestre abraça um homem musculoso com cabelo escovado para o lado, exibindo todos os dentes. “Hollywood!”

Penso em explicar que nunca ví mais gordo, mas pra quê? Rajan está abrindo um enorme caderno de capa grossa, onde clientes deixam recados. Tento folhear, mas a atenção já mudou para a fotografia de senhora loira em êxtase sendo massageada por duas indianas – no Kerala mulher faz massagem em mulher, homem faz massagem em homem. A prática ‘cross gender’, mesmo que com fins medicinais e feita com seriedade, é considerada imoral. Compreensível, sendo a massagem ayurveda uma coisa tão sem pudor em tocar seios e nádegas, e os indianos uma gente tão preocupada com a modéstia.

Noto só agora que há mais duas pessoas na pequena sala de frente pra rua: um senhor sentado no cansado sofá marrom encostado no canto entre duas prateleiras apinhadas de frascos e potes, e a senhora Gulakkal, vestindo um sári verde escuro, que sorri para mim num namaskaram tímido e me convida a seguir com ela para dentro da casa.

Estou na Índia há dez dias e ainda não me habituei nem com os diálogos em inglês quebrado e nem com a insistência para vender produtos e serviços para os visitantes. Tento um “não vou fazer massagem agora” firme. Mas Rajan ignore, não desiste e aparece com uma agenda do ano, tão cheia de pedaços de papel que não se consegue fechar. “Amanhã às nove?”.

Penso por um momento em simplesmente marcar e dar o cano, mas os sorrisos ansiosos do senhor e senhora Gulakkal, por mais insistentes que sejam, não convidam à desonestidade. Finalmente me sento, aceito a xícara de chai (excessivamente quente e doce, como quase tudo na Índia) e calmamente explico que acabei de chegar na cidade, que vou ficar quatro dias, que estou com um grupo e… um grupo de turistas? Ah, mas isso é maravilhoso, ele comemora! “Apresentação de kalari, hoje às seis da tarde, vendo os ingressos para todos!”.

Suspiro, cansada, aceitando ver a coleção de adagas e outras armas de kalari que Rajan mantém em cima de um armário alto. O prateado fosco me faz pensar há quanto tempo não saem dali, mas meu anfitrião nem me dá tempo para pensar: quer saber quantos somos e se podemos acertar já o preço por pessoa. Eu só queria comprar óleos de massagem e sinto saudade no solene doutor ayurveda do hotel que examinou meu joelho no começo da semana, de roupa branca e fala mansa.

Peço mais um pouco de chai, sorrio de volta para o senhorzinho sentado no sofá, e decido ser firme, tirando da carteira o valor a ser pago pelas três garrafas de óleo. Rajan suspira, decepcionado e sou eu que acabo cedendo.

“Tá bom, mais uma coisa…”
Num pulo, ele senta com a coluna ereta e sorri “O que é?”
“Tenho um problema de digestão, sabe? Desde que cheguei na Índia. Comida pesada, muito óleo, muitos temperos…”
Rajan escuta com seriedade e conclui, sem cerimônias: “Você está defecando sangue?”
“O quê? Não! É o contrário! Eu não consigo, você sabe, ir ao banheiro”.

Solenemente, ele puxa meu braço me fazendo levantar e pede licença para tocar minha barriga, inchada com a de uma grávida no quarto mês. “Gás?” Sim, gás, confirmo com uma careta.

Rajan corre para um pequeno armário debaixo da mesa e aparece com uma garrafa cujo rótulo exibe a fotografia de uma cabeça de alho pegando fogo. Tenho sérias dúvidas sobre a eficiência e diagnóstico, mas não quero discutir e antes mesmo que eu pergunte qualquer coisa Rajan já abriu a garrafa e aperta meu maxilar, me fazendo abrir a boca. Atrás dele, a senhora Gulakkal sinaliza para que eu levante a cabeça. O gosto é de menta com alho e outras coisas que não consigo identificar. A dupla me olha ansiosa – e aí?

“Puxa, não é que já me sinto muito melhor?” minto. Risadas, palmas. Aproveito a satisfação momentânea para combinar – vou pagar agora pelos óleos e remédio e amanhã cedo volto com alguém do meu grupo para combinar a apresentação de kalari. Não posso agendar agora, não sei os planos do grupo. E, sim, claro, amanhã também marcamos a massagem.

Convencidos, eles me deixam ir, apertando com força minha mão enquanto andamos até a rua. Até amanhã então, sim, grupo grande, exibição de kalari, massagem que não é pra turista, tomar o remédio de alho três vezes ao dia, entre as refeições.

Sei que comprei o que precisava e que com a quantidade de turistas andando pela rua de Kumily a pequena farmácia do senhor Gurukkal encontrará outro cliente na próxima meia-hora. Aperto o passo, desviando dos tuktuks que passam velozes. E de repente percebo algo – um gosto leve e refrescante de ervas refrescantes sobe pela garganta. Minha barriga não está mais inchada. Olho para trás e agradeço com um aceno à família Gurukkal.

PS: Googlando o nome Rajan Gurukkal notei que há um célebre cientista e professor do Kerala com o mesmo nome. Não é o mesmo Rajan. A farmácia ayurveda está no TripAdvisor com um único review que louva a massagem que eu perdi. E graças à internet você pode ver o rosto e ouvir a voz do senhor Gurukkal nessa entrevista do canal Journey to Infinity no Vimeo, do qual emprestei a imagem que ilustra a chamada na home:

 

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