28th March 2014
“Dizem que aqui é o fim da Índia, nesse lugar onde os três mares se encontram. Mas o mar é um só, e é onde tudo começa”. Foi assim que definiu o senhor que há quatro anos de dedica a cuidar do altar em homenagem ao filósofo/monge hindu Swami Vivekananda. As pessoas vão para Kanyakumari molhar os pés no encontro dos três mares (Árabe, Bengala e Índico), observar o sol de pôr da varanda do museu dedicado ao Mahatma Gandhi (que teve suas cinzas espalhadas ali), pedir benção, pegar o barco até o Memorial Vivekananda e ver a estátua do filósofo/poeta/santo tamil Thiruvalluvar, espécie de Colosso de Rhodes hindu com 40 metros de altura que domina a paisagem. Mas isso não impede que todos os dias o devoto acorde para oferecer flores frescas, limpar e manter em ordem o espaço erguido em 1964 logo atrás do templo da deusa virgem Devi Kumari, em Kanyakumari, Tamil Nadu, extremo sul da Índia.
Há algo de surreal em estar na extremidade de um continente e aproveito a sensação de estar o mais longe de casa possível, sozinha. Não sei se sou a única ocidental tomando vento no calçadão que permite que os visitantes cheguem até o sangam, a confluência dos três mares, mas com certeza sou a única mulher tatuada e de cabelo curto no espaço visível, o que faz com que muita gente fale comigo, normalmente em tamil (acho). Os vendedores são mais diretos e usam as palavras comuns de inglês para tentar me fazer entrar em qualquer loja – good prices, hello madam! e por aí. O calçadão do sangamfica atrás do templo e a única coisa protegendo as pessoas do sol forte é uma construção de pedra onde dezenas de mulheres se amontoam, repartindo espaço, comidas e bebidas. Mais adiante ficam duas pequenas praias de pedra, onde crianças e homens nadam, muitas vezes de roupa, e algumas poucas mulheres, sempre acompanhadas, molham os pés e as barras dos sári.
Um caminho de pedra leva até uma espécie de balcão com três lados, um para cada mar, com degraus que descem até a água. Casais comportados sentados nos muros de rocha dão as mãos discretamente, um homem usando o lungi de algodão comum no sul da Índoa tenta pescar com linha de nylon e eu tento gravar um vídeo sem sucesso – o barulho do vento é alto demais.
Quatro da tarde é a hora de reabrir o templo da Devi Kumari, um dos poucos que celebram divindade feminina na Índia, construído há dois ou três mil anos – dependendo da fonte que você consultar, tudo que é muito antigo na Índia não tem data certa. A maior parte dos templos no Kerala não permite a entrada de não-hindus, mas aqui é Tamil Nadu e não há nenhum aviso sobre isso então sigo até a entrada e entro na fila pela lateral da construção vermelha, guardando os sapatos e a câmera na mochila antes de chegar na porta onde, como todo mundo, deixo mochila e tudo o mais nas mãos de um dos guardas do templo.
A fila serpenteia para dentro do templo de paredes de pedra escura e andamos comportadamente, o calor sempre aumentando, até chegar na frente da divindade de pedra azul, enfeitada por flores, jóias e tecidos. Não há mais o costume das mulheres de levarem sári para a Devi, mas muita gente leva garrafinhas de óleo perfumado, doces e dinheiro. Algumas vezes por ano, em dias de festival, a Devi, que ostenta um brilhante rubi vermelho no nariz, é retirada do templo para tomar banho. Na frente do altar de teto baixo ficam dois monges que cuidam de receber e oferecer os pujas, oferendas. Há quem chore, quem ajoelhe e quem fique de canto olhando – meu caso.
Estou um pouco constrangida por não ter levado nada para a Devi e qualquer dinheiro que poderia doar está na mochila que ficou na frente do templo, junto com sapatos, passaporte, câmera e tudo o mais. Depois de meia hora no calor sufocante do templo fechado e cheio de óleo e velas, dando passagem para um grupo escolar, o monge faz um sinal me chamando, pinta minha testa com a mistura de óleo e cúrcuma e indica a saída. Uma vez fora do silêncio do templo, o barulho de gente falando e o sol forte de Kanyakumari seguem idênticos. Não tive uma epifania religiosa, entendi muito pouco do que vi e me contento com localizar minhas coisas no meio do amontoado de sapatos, carteiras, câmeras e bolsas na entrada do templo. Das muitas coisas que mudariam em mim ao longo do mês, essa foi a primeira – aprender a confiar no que não conheço. No dia seguinte faria minha única viagem de trem, em direção à Trivandrum, para encontrar o #KeralaBlogExpress e começar a tour pelo Kerala. O “fim da Índia” foi só o meu começo.